por WELDER GOMES REIS* REVISTA CONSULTOR JURÍDICO
Hoje queria falar sobre árvores. Sim, sobre árvores. Ou, melhor,
sobre o assassínio de inúmeras árvores que, sem qualquer pudor, se
anuncia na cidade do Rio de Janeiro.
Perde-se a conta de quantas árvores serão retiradas definitivamente das
Praças Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, e Antero de Quental, no
Leblon, para permitir a transmutação desses (últimos) espaços urbanos de
reflexão e contemplação em estações de metrô. Para aqueles que não
conhecem o Rio de Janeiro,
ambas são “praças ícones” de seus bairros, recantos verdes muito
queridos dos moradores, principalmente dos idosos e das crianças.
Em todo o mundo, estações de metrô são acessadas por escadas
discretas. Na calçada são indicadas por placas com o nome das linhas que
por ali passam, nada mais, apenas isso. No subterrâneo, a obra de arte
de engenharia se impôs, acima, na superfície da urbe, procurou-se deixar
levíssima cicatriz do progresso.
Só no Brasil as entradas de estações são megaestruturas tubulares,
desproporcionais, feias, de extremo mau gosto, que rasgam o solo,
fazendo-se visíveis unicamente para permitir eventos de inauguração de
interesse politiqueiro.
Mas a sociedade se mobilizou, os moradores foram à Ágora protestar.
Distribuíram panfletos. Pressionaram o Estado. A imprensa repercutiu.
Personalidades se fizeram ouvir. Até mesmo o recluso Rubem Fonseca
escreveu no O Globo um belo réquiem para seu ipê-amarelo do Leblon. A
pressão levou a que o Instituto Estadual do Ambiente (“Inea”) impusesse
condições à emissão do licenciamento ambiental, exigindo a redução das
dimensões das entradas de estações e do número de árvores que serão
retiradas, proibindo a instalação de galerias comerciais no subsolo,
entre outras providências.
O resultado pode não ter sido o melhor — vidas verdes ainda serão
perdidas — mas o exercício da cidadania surtiu efeito, encorajando os
moradores a prosseguirem na luta pela preservação dos espaços verdes de
liberdade.
Essa luta pela preservação da saúde urbana, tão legitimamente
exercida no exemplo das praças cariocas, bem que poderia inspirar os
militantes do Direito Tributário,
encorajando o protesto pela preservação de direitos e garantias
fundamentais dos particulares nesse domínio em face de um Estado cada
vez mais espaçoso e belicoso, que se faz presente em todas as esferas de
Poder para “garantir” suas metas de arrecadação.
Mas essa luta por vezes é tímida, envergonhada. Talvez diante de uma
falsa ideia que se tenta incutir de “paridade de armas”, de “igualdade
de posições”, como se Estado e contribuinte contendessem em “pé de
igualdade”. Não se pode admitir tamanho equívoco. O Estado-Fisco não tem
nem direitos, nem garantias, tem competências constitucionais que devem
ser exercidas na justa, precisa e exclusiva medida da lei. Este é o
princípio da legalidade, consagrado especificamente em matéria
tributária no artigo 150, I da Constituição, uma das maiores garantias
historicamente conquistadas pelos cidadãos.
Garantia mais reforçada porque formulada como uma “reserva absoluta
de lei”. Como ensina Alberto Xavier: “a exigência de reserva absoluta
transforma a lei tributária em lex stricta (princípio da estrita
legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da
decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria
lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma,
independente de qualquer valoração pessoal”.[1]
Infelizmente, no dia a dia, cada vez menos o Fisco quer “subsumir o
fato na norma”. Muitas vezes faz rigorosamente o inverso: procura
subsumir — a qualquer preço e por qualquer motivo — a norma nos fatos.
Esgarça a tipicidade normativa para a conduta nela recair e se, mesmo
assim, não for possível tributar, então o Fisco assume as vestes de um
Inquisidor do Santo Ofício. Torquemadas modernos não pouparão acusações:
simulação, fraude
à lei, abuso de direito, falta de propósito negocial, falta de
substância, etc. De alguma forma o contribuinte terminará sendo punido;
nesse auto de fé fiscal o contribuinte expiará suas culpas na fogueira.
Isso é inexorável.
Aí, depois de ter recebido uma autuação
— muitas vezes com graves repercussões na esfera penal — em que incidem
as maiores taxas de juros do planeta, o acusado começará uma via crucis
para provar sua “inocência” diante dos tribunais.
A proliferação de autuações a qualquer preço só contribui para
aumentar as taxas de litigiosidade fiscal, entupindo as artérias dos
tribunais administrativos e judiciais. Litigar em matéria tributária é
jocosamente chamado nos congressos internacionais como o segundo esporte
nacional brasileiro.
A propósito, há algumas semanas estivemos participando do V Congresso
“US — Latin America Tax Planning Strategies” em Miami, evento realizado
por organizações que dispensam maiores apresentações — a International
Bar Association (IBA), a International Fiscal Association — USA Branch
(IFA), a American Bar Association (ABA) e o Tax Executives Institute —,
que congregou diversos profissionais do Direito Tributário:
advogados autônomos, responsáveis pelos departamentos jurídico/fiscal
das empresas e representantes das administrações fiscais das Américas do
Norte, Central e do Sul.
A mesa de debates mais instigante foi composta por profissionais
responsáveis pelos departamentos jurídico/fiscal[2] porque nela foi
apresentada a perspectiva do cliente, para os advogados, e do
contribuinte, para os representantes das administrações fiscais.
A mais perfeita definição do estágio atual da relação
Fisco-contribuinte no Brasil foi dada por uma metáfora de um dos
palestrantes, que será mais bem compreendida por aqueles que foram pais
ou crianças nos anos 70.
A relação Fisco-contribuinte é como um desenho animado de Hanna
Barbera. Ora sentimo-nos como uma família do futuro, “Os Jetsons”,
diante do elevadíssimo grau de informatização no cumprimento das
obrigações acessórias; ora sentimo-nos como uma família das cavernas,
“Os Flintstones”, diante das dificuldades burocráticas pré-históricas
vivenciadas no cotidiano das empresas.
Foi também muito interessante constatar que o cliente-contribuinte
tem total e absoluta aversão às surpresas. O empresário busca
estabilidade, segurança, certeza. Não está em jogo pagar ou deixar de
pagar os tributos. Aliás, tudo o que não se quer é deixar de pagar o que
é devido, mas também ninguém quer ser obrigado a pagar o indevido.
Clamam pela justa medida da lei, porque acreditam que a observando
estarão livres de surpresas.
Esta aversão a surpresas torna-se cada dia maior à medida que a
América Latina como um todo e o Brasil em especial ganham relevância no
conjunto dos investimentos transnacionais. O problema da insegurança
jurídica era relativizado porque esses mercados, até pouco tempo, eram
percentualmente insignificantes. Agora já não mais o são e a tendência é
que essa relevância aumente muito nos próximos anos. Quanto maior o
capital investido, maior a aversão ao risco.
O adensamento do contencioso fiscal, motivado por autuações que
extrapolam o tipo legal, muitas vezes de valores estratosféricos, que
submetem o contribuinte ao ônus da prova da sua inocência e às mais
graves ameaças de constrição patrimonial só contribuí para rotular o
país como um “ambiente inseguro” para se investir.
Impõe-se, por isso mesmo, a cada dia que passa que se batalhe pela
segurança jurídica, “norma princípio que exige, dos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais
para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um
estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, (…)”[3].
Confiança e calculabilidade jurídica, como as materializar?
Um exemplo de crivo de revisão para tornar o ambiente mais seguro nas
relações fisco-contribuinte pode estar em um maior controle
institucional sobre a “criatividade” dos agentes fiscais que desobedecem
as leis para atingir o objetivo de arrecadar. Referido controle poderia
ser exercido em autuações que excedessem certos valores ou que
assentassem em acusações de simulação e fraude à lei, fazendo com que a autuação
só se tornasse eficaz depois de revista por um órgão interno colegiado
do próprio Fisco. Certamente um juízo prévio de controle reduziria a tão
frequente elasticidade da tipicidade e as acusações de simulação e fraude à lei.
A ameaça de eliminação das praças e de suas árvores levou cidadãos às ruas do Rio de Janeiro; a realidade da insegurança jurídica no domínio tributário deve nos animar a semelhante luta.
O Estado não existe sem o contribuinte, não devemos nunca esquecer isso.
[1] Cfr. Alberto Xavier, Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, Ed. Dialética, São Paulo, 2001, p. 18.
[2] O painel chamou-se “Tax Executives Perspective: Issues Facing Tax
Executives and Their Advisors in the Context of International Tax
Developments” e foi realizado no dia 14 de junho.
[3] Cfr. Essa é uma parte da definição proposta por Humberto Ávila,
no livro “Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no
Direito Tributário”, Ed. Malheiros, São Paulo, 2011,
p. 268. A definição completa é a seguinte: “norma princípio que exige,
dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de
comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos
cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de
calculabilidade jurídica, com base na sua cognoscibilidade, por meio da
controlabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas
reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento
garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração,
surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e responsavelmente o seu
presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do
seu futuro”.
*Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier Bragança Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2012